sábado, 11 de setembro de 2010

O menino que domou o vento

Com dois livros de física elementar, um monte de lixo e a energia eólica, jovem abastece lâmpadas e celulares em sua vila no interior da África

Ricardo Santos // fotos: Tom Rielly
http://revistagalileu.globo.com/Revista/Galileu/0,,EDG87218-8489-221,00-O+MENINO+QUE+DOMOU+O+VENTO.html

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FORÇA AÉREA: William Kamkwamba mostra a instalação que carrega celulares e acende luzes em Malauí, na África

Escondido entre Zâmbia,Tanzânia e Moçambique, o Malauí é um país ruralcom15 milhões de habitantes. A três horas de carro da capital Lilongwe, a vila de Wimbe vê um garoto de 14 anos juntando entulho e madeira perto de casa. Até aí, novidade nenhuma para os moradores. A aparente brincadeira fica séria quando, dois meses depois, o menino ergue uma torre de cinco metros de altura. Roda de bicicleta, peças de trator e canos de plástico se conectam no alto da estrutura e, de repente, o vento gira as pás. Ele conecta um fio, e uma lâmpada é acesa. O menino acaba de criar eletricidade.

O menino e a importância de suas descobertas cresceram. William Kamkwamba, agora com 22 anos, já foi convidado para talk shows, deu palestras no Fórum Econômico Mundial, tem site oficial, uma autobiografia - The Boy Who Harnessed the Wind (O Menino que Domou o Vento, ainda inédito no Brasil) - e um documentário a caminho. O pontapé de tamanho sucesso se deve a uma junção de miséria, dedicação, senso de oportunidade e uma oferta generosa de lixo.

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EM TERMOS DE GERAÇÃO e consumo de energia elétrica, o Malauí é o 138º país do mundo

Uma seca terrível no ano 2000 deixou grande parte da população do Malauí em situação desesperadora. Com as colheitas reduzidas drasticamente, as pessoas começaram a passar fome. "Meus familiares e vizinhos foram forçados a cavar o chão pra achar raízes, cascas de banana ou qualquer outra coisa pra forrar o estômago", diz Kamkwamba. A miséria o impediu de continuar na escola, que exigia a taxa anual de US$ 80. Se seguisse a lógica que vitima muitos rapazes na mesma situação, o destino dele estava definido: "Se você não está na escola, vai virar um fazendeiro. E um fazendeiro não controla a própria vida; ele depende do sol e da chuva, do preço da semente e do fertilizante", diz Kamkwamba.

Para escapar dessa sentença, começou a frequentar uma biblioteca comunitária a 2 km de sua casa. No meio de três estantes com livros doados pelo Reino Unido, EUA, Zâmbia e Zimbábue, Kamkwamba encontrou obras de ciências. Em particular, duas de física. A primeira explicava como funcionam motores e geradores. "Eu não entendia inglês muito bem, então associava palavras e imagens e aprendi física básica." O outro livro se chamava Usando Energia, tinha moinhos na capa e afirmava que eles podiam bombear água e gerar eletricidade. "Bombear um poço significava irrigar, e meu pai podia ter duas colheitas por ano. Nunca mais passaríamos fome! Então decidi construir um daqueles moinhos."

Você está fumando muita maconha. Tá ficando maluco." Era isso que Kamkwamba ouvia enquanto carregava sucata e canos para seu projeto. "Não consegui encontrar todas as peças para uma bomba d'água, então passei a produzir um moinho que gerasse eletricidade." Seu primo Geoffrey e seu amigo Gilbert o ajudaram, e após dois meses as pás giravam. O gerador era um dínamo de bicicleta que produzia 12 volts, suficientes para acender uma lâmpada. As pessoas próximas a ele só acreditaram em sua conquista quando ele ligou um rádio, que na hora tocou reggae nacional. "Fiquei muito feliz. Finalmente as pessoas reconheceram que eu não estava louco."

"Conseguimos energia para quatro lâmpadas, e as pessoas começaram a vir carregar seus celulares", diz. No Malauí, a companhia telefônica se recusou a fornecer infraestrutura para as vilas, e as empresas de celulares chegaram com torres de transmissão e baratearam os aparelhos. Por isso, hoje há mais de um milhão de aparelhos celulares no país, uma média de oito para cada cem habitantes.

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NOVAS MEDIDAS: o primeiro moinho ganhou altura (12 metros) e potência

"Bombear um poço significava irrigar. meu pai podia ter duas colheitas por ano. Nunca mais passaríamos fome! Então decidi construir um daqueles moinhos."

A história chegou aos ouvidos do diretor da ONG que mantinha a biblioteca. Ele trouxe a imprensa, e o menino foi destaque no jornal local. E daí alcançou o diretor do programa TEDGlobal, uma organização que divulga ideias criativas e inovadoras que convidou Kamkwamba para uma conferência na Tanzânia. O jovem aumentou o primeiro moinho para 12 metros de altura e construiu outro que bombeia água para irrigação. "Agora posso ler à noite, e minha família pode irrigar a plantação", diz.

Depois de cinco anos, com ajuda daqueles que descobriram sua história, Kamkwamba voltou à escola. Passou por duas instituições no Malauí, estudou durante as férias no Reino Unido e agora cursa o segundo ano da African Leadership Academy, instituição em Johannesburgo que reúne estudantes de 42 países com o intuito de formar a próxima leva de líderes da África.

Apesar de não ter mudado em nada a sua humildade, o sucesso e as oportunidades de estudo tornaram mais ambiciosos os planos de Kamkuamba: "Quero voltar ao Malauí e botar energia barata e renovável nas vilas. E implementar bombas d'água em todas as cidades. Em vez de esperar o governo trazer a eletricidade, vamos construir moinhos de vento e fazê-la nós mesmos".

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Escrito por William Kamkwamba em conjunto com o jornalista Bryan Mealer, The Boy Who Harnessed the Wind foi lançado em 29 de setembro nos EUA e ficou entre os dez mais da livraria virtual Amazon


ENTREVISTA

Conversamos com William Kamkwamba, o menino africano que construiu um moinho com lixo e dois livros de física
Ricardo santos // Foto: Tom Rielly

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* Conte-me um pouco sobre você, William. Quando você nasceu, onde foi, como é sua família?

Nasci em 5 de agosto de 1987 em Dowa, no Malauí. Moro com seis irmãs, meu pai e minha mãe. Em uma família de garotas, você pode imaginar os problemas por que passei. Na escola, os garotos sempre implicavam comigo porque eu não tinha um irmão mais velho que me protegesse. De qualquer jeito, sobrevivi.

* Como é sua vida na vila onde mora, como são as condições de água, eletricidade...?

Moro na vila de Wimbe. É um lugar pequeno com uma grande estrada empoeirada e algumas lojas. Chamamos de Centro de Comércio. Há o barbeiro, o soldador, vários armazéns que vendem roupas e uma loja Farmer’s World, onde meu pai compra milho para plantar e fertilizante. Seguindo essa estrada, há a minha vizinhança, Masitala. A cidade grande mais próxima é Kasungu, com muitos habitantes, um grande supermercado e várias lojas. Para chegar até lá, tem que ir de carona, espremido por uma hora na caçamba de um caminhão. Só 2% da população rural do Malauí tem eletricidade e isso é um grande problema. E antes de eu conseguir perfurar um poço e providenciar água limpa para minha família, não havia água corrente por quase 100 km.

* Em 2000, o Malauí passou por uma seca terrível. Foi por isso que você teve de deixar a escola em 2002?

Sim. Essa seca fez faltar alimento em todo o país. Ninguém conseguia plantar o suficiente para comer. As pessoas começaram a passar fome. Muitos moradores aqui perto de Wimbe morreram de inanição. Causou a morte de mais de 10 mil malauianos. Meus vizinhos e minha família fomos forçados a cavar o solo para achar raízes e cascas de banana, qualquer coisa para forrar o estômago. A taxa para minha escola era 80 dólares por ano. Por causa da situação, meu pai não conseguia pagar, tive que parar de estudar com 14 anos.

* Como você se sentiu por estar fora da escola?

Era bem ruim. Se você não está estudando, quer dizer que vai ser fazendeiro. Eles não controlam a própria vida; dependem do sol, da chuva, do preço das sementes e do fertilizante. Quando saí da escola, olhei meu pai, aqueles campos ressecados e vi o resto de minha vida. Era um futuro que não podia aceitar.

* Foi aí que você começou a frequentar uma biblioteca perto da sua casa?

Sim. Era um lugar bem pequeno dentro de minha escola primária, a uns dois km de casa. Eu geralmente caminhava, ou ia de bicicleta. A biblioteca tinha três estantes cheias de livros doados pelos EUA, Reino Unido, Zâmbia e Zimbábue. Fui com a esperança de estudar por conta própria, para ficar no mesmo nível dos amigos que continuaram na escola. Comecei a ler livros de ciência, e isso mudou minha vida.

* Você construiu um moinho de vento a partir das explicações de um livro, sem nunca ter visto um. Como foi isso, e para que você queria um moinho?

No livro, “Explaining Physics”, entendi como funcionavam motores e geradores. Não lia inglês muito bem. Usei diagramas e fotos para associar as palavras, e assim aprender física básica. O outro livro que li chamava-se “Using energy”, tinha uma foto de um moinho de vento na capa. Dizia que moinhos podem bombear água e gerar eletricidade. Meu pai poderia irrigar a plantação, aumentar a colheita e nós nunca mais passaríamos fome! Por isso decidi construir um moinho. Não havia instruções, mas sabia que se um homem havia construído no livro, eu também conseguiria.

* Como você fez para arranjar as peças? Quanto tempo levou?

Fui a um ferro-velho perto de casa e encontrei vários pedaços de metal e uns canos de plástico. Mas vi que não tinha todas as peças para uma bomba-d’água, então procurei fazer um moinho que gerasse eletricidade. Quando me viam carregando os ferros, as pessoas achavam que eu estava louco. Me provocavam e diziam que eu estava fumando maconha. Mas não deixei que isso me incomodasse. Continuei. Meu primo, Geoffrey, e outro amigo, Gilbert, me ajudaram a construir. Ficou pronto em dois meses. Quando o vi funcionando, fiquei muito feliz. Finalmente as pessoas sabiam que eu não estava louco.

* Quanta energia gerava o moinho?

O gerador do moinho era um dínamo de bicicleta, produzia 12 volts. Era suficiente para acender uma lâmpada. Mais tarde, meu primo achou uma bateria de carro na estrada. Demos uma carga nela, e conseguimos energia para manter quatro lâmpadas e dois rádios. As pessoas faziam fila para carregar seus celulares. Os celulares estão em todo o lugar na África porque são baratos. Há poucos lugares onde a eletricidade chega - geralmente nos arredores das empresas estatais de tabaco - e algumas lojas cobram para as pessoas carregarem os celulares. Comigo era grátis.

* Depois que sua história se espalhou, você voltou a estudar. Como estão seus estudos?

Depois que eu fui à conferência do TED [organização sem fins lucrativos que promove conferências anuais para divulgar boas idéias] em Arusha, na Tanzânia, algumas pessoas se aproximaram e me ofereceram ajuda para voltar à escola. Primeiro frequentei um colégio cristão na capital. Agora estudo em Johannesburgo, na África do Sul, na African Leadership Academy, uma escola que pretende treinar a próxima geração de líderes do continente. Há 200 estudantes de 42 países diferentes da África.

* Agora que você viu que seu moinho não só ajudou sua família, mas gerou esperança em cima de energia elétrica e renovável, quais são seus próximos planos?

Depois de fazer faculdade, talvez nos EUA, quero voltar ao Malauí e descobrir maneiras de produzir energia barata e renovável nas vilas. Quero construir bombas-d’água de baixo custo e que possam ser operadas facilmente. E também colocar um moinho de vento em cada cidade do Malauí. Quando a companhia estatal de telefones se recusou a atender às vilas, as empresas particulares de telefonia celular chegaram com torres e agora todos têm celulares. Nós simplesmente passamos por cima dessas companhias ineficientes. Espero fazer o mesmo com a energia no Malauí. Em vez de esperar o governo levar eletricidade até as vilas por linhas de força, vamos construir moinhos de vento e gerá-la nós mesmos.

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